"A dada altura quase fui vocalista dos Kussondulola"

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Uma das suas primeiras experiências profissionais foi a bordo de um cruzeiro...

Eu tinha uma amiga cantora brasileira que vinha todos os anos a Portugal. Da última vez que veio, ao fazer uns exames, descobriu que estava doente e que não podia voltar a embarcar. E convidou-me a mim para fazer o lugar dela. Aceitei. De repente fazem-me cantora principal do navio... Essa experiência foi muito boa para mim como cantora, fez com que crescesse. Deu-me um certo traquejo.

O que cantava no barco? 

Tudo! Eles acharam que eu era baiana.
Antes de optar pelo fado passou por outras músicas. E quase integrou bandas.

Como, por exemplo, os Cool Hipnoise...

Quase, quase. E quase também fui vocalista dos Kussondulola, porque o Janelo [o vocalista] queria uma cantora que fizesse vozes e que, de vez em quando, também pudesse cantar um ou outro tema. Ainda fui fazer uma audição, mas o reggae não era bem o meu género.

O que ouvia nessa altura?

O que eu gostava mesmo nessa altura era de Skunk Anansie e coisas do género.

Mais rock?

Era muito mais rock'n'roll. Mas o mercado tinha já as suas bandas de rock, mas que faziam covers. Depois fui fazer umas coisas tipo disco sound como alternativa àquilo que já existia, e que por acaso resultou muito bem. E depois faço uma banda com o João Pedro e o Tiago no piano, que se chamava Funky Town!

Tocavam em bares...

Uma banda que toque num bar, ou um cantor que toque num bar, tem a dificuldade de chamar a atenção das pessoas e predispô-las a ouvi-lo. Porque as pessoas vão tomar um copo, vão descontrair. A música ali é um acessório.

Tinha de "roubar" a atenção?

Quando eu chegava ao palco de qualquer bar, esse era o meu objectivo: ter de conseguir que estas pessoas me ouvissem. Quando acabávamos a noite eu dançava em cima das mesas, puxava as pessoas, saía do palco, fazia 30 por uma linha, mas saíam de lá a ouvir-me com certeza. E a banda estava a resultar muito bem. Entretanto, começo a fazer uma maqueta, eu, o João Pedro e o Tiago Machado. E quem ouve essa maqueta é um dos mentores dos Fletwood Mac.

É aí que surge o "mítico" desafio para ir gravar a Londres...

Nós já estávamos a arrumar as bagagens e eu, de repente, canto um fado para o José Luís Gordo, no Berimbar, que é o bar da mãe do João Pedro. E o José Luís Gordo ficou a olhar para mim e convida-me a ir para a casa de fados dele… Nunca tinha ido para esses sítios, a não ser uma experiência que tive, em tempos, na Adega Machado, convidada pelo filho do Alfredo Marceneiro, o Alfredo Duarte Júnior, que era muito amigo dos meus pais.

E como correu?

Fui fazer a experiência. Aquilo foi assim um "baque" no coração, na alma, não sei explicar. E disse "não, eu quero é ficar aqui". Chego a casa, passado para aí duas semanas de começar a trabalhar no Senhor Vinho e eu digo ao João Pedro: "Não vou a Londres." Diz-me ele: "O quê??" Respondo: "Sinto-me bem é ali, não quero ir a Londres. Não quero fazer discos ne nhuns, gosto de estar ali, estou a aprender outra vez, estou a reviver a minha infância, aquilo que aprendi quando era miúda, estou tão feliz, não vou fazer uma coisa que não vai ter nada a ver comigo nunca na vida."

E a sua vida mudou?

Começo a trabalhar dois dias no Senhor Vinho. A Maria da Fé, tanta gente bonita, Maria Vilar, Jorge Fernando… E o Jorge Fernando começa- -me a desafiar para fazer um disco. E eu dizia- -lhe "um disco?" Disse-me para fazer uma edição de autor e depois dava um ao meu pai… E quando ele falou no meu pai, tocou-me ao coração.

Que orçamento tiveram para gravar?

Mínimo, mínimo. Gastei cinco mil e tal euros no disco, acho eu, não consigo fazer muitas contas, mas acho que andou à volta disto. O disco fica feito e o João Pedro começa-me a dizer "então e se procurássemos uma editora?"

Esse era, à partida, um disco para vender apenas na casa de fados quando cantasse?

Era, era. Chamava-se Fado em Mim porque eram os fados que eu ouvi na minha adolescência, na minha infância, e de que gostava.

E como chega o disco a uma editora estrangeira?

Um dia estava a cantar em Antuérpia e lá estava o Albert [dono da editora World Connection], com uma roupa muito esquisita. E vem falar comigo, entrega-me um cartão e eu digo assim "grande maluco", julga que tem uma editora… Chego a Lisboa... E não é que ele começou mesmo a telefonar e a telefonar? Aqui as editoras não tinham dinheiro para investir com fado, naquela altura… Cá em Portugal não existia muito dinheiro para investir em fado.

Mas já se começava, aos poucos, a gravar novos discos...

O Camané já tinha gravado, a Mafalda já tinha gravado, a Mísia, que já existia há muito tempo, já gravava também. A Cristina Branco existia na Holanda. O Carlos do Carmo, nem falar, o senhor Carlos do Carmo será sempre o senhor Carlos do Carmo, como Amália será sempre, claro, quem é: a grande diva de fado e acabou! E depois existiam coisas pontuais, que se falavam, mas nada muito sério. E o Albert sempre a insistir...

Até que um dia assina...

E assino. Mas ao contrário do que as pessoas pensam, eu já fazia muitos concertos em Portugal antes de ter disco. Não sabiam bem o nome, mas diziam: é a fadista loirinha. E então o disco é lançado em Portugal, depois na Holanda. E em Portugal acontece o que toda a gente sabe, vende cento e muitas mil cópias, quando diziam que o fado não vendia. Hoje, o que eu acho engraçado é que não há editora nenhuma que não queira ou não tenha alguém que cante fado.

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